Previsão do tempo dos terrenos baldios

Cinco minutos no futuro, cinco minutos a partir de agora meu coração vai bombear como nunca o sangue pro meu cérebro, eu vou pensar nos laços entre minhas mãos, seus olhos e a energia dos terrenos baldios. Daqui cinco minutos vou doutrinar em minha mente a lição da vida dos terrenos baldios, suas multidões embaixo das folhas, a vida baldia e deslacrada, seus olhos. Daqui cinco minutos vou conectar a minha vida ao fluxo de um rio, de um terreno baldio, cheio de pequenas folhas e flores e buracos de insetos, cheio de vida que verte. Em 5 minutos minhas veias, minha língua, seus olhos, meu semblante inerte. Eu que floreio meus olhos com ouvidos cheios de lágrimas. Contingente de vias soltas, água que inunda o pátio, o prédio, o terreno baldio. Em cinco minutos, farei uma previsão, de que a água não se contém por suas bordas de cimento e as borboletas são fadas que significam anjos e morte doce de rio verde, assustam predadores, gritam cores e flanam seus lingotes de fogo. Em cinco minutos, entrei no vértice da minha consistência, na profundeza do centro da minha cabeça, ali onde as palavras se inscrevem num manto limpo. Pequenas sobrevivências em néctar humano, caldo doce, aveia de plasma de corpo, coração de alma, língua de sol. Frio, ectoplasma, coronária, canária, livida, pia veia que bombeia, pia, há cinco minutos, pia o sangue na terra, pia no chão. Eu, daqui cinco minutos conectei todos os terrenos baldios, e sua energia baldia, e o vento que rompe as suas cortinas. Em cinco minutos conectei neurônios que nasceram em hemisférios opostos, eles giram sincronizados no ar, distantes, e não existe palavra pra descrever a força que os conecta. Linhas são sonhos. Retas são sonhos de pontos, letras são o hálito, bafo de sons, sejam compostos ou puros e em cinco minutos não há mais tempo e o tempo todo existe em cinco minutos. Um lugar que ninguém vê, um canto desabitado, sem memória, borbulhando vida ainda desorganizada. Meus olhos que só veem o oposto das cores, do reflexo do brilho do escuro. Cinco minutos de um relógio, de uma música, da vida de um micróbio, eu conecto o som daquela água cheia de esgoto em minha estação de tratamento, minha mente, lua vermelha com lábios de céu, escorro lichia em meus barros, languida em meus braços, esguia de barro, lar do meu céu do meu lar doce mel. Onde no ar há de haver limpo, poeira de esteira, loja de plástico, prédio de barro, escondido no canto, no feltro. Aquele pássaro paralisado no chão, perto do rio, bica na água, não tem peixe nem água nem bica nem barro nem pássaro, eu vi daqui 5 minutos, eu vi daqui cinco minutos um homem morreu, um carro bateu, um som de inverno na televisão, uma menina lembrou de 5 minutos atrás, 5 minutos antes de agora, 5 minutos na história, no mesmo lado do mesmo canto do barro daquele terreno baldio que ninguém vê, ninguém olha, onde ninguém sonha, e ele se deforma e desdenha, desenha principalmente de noite, quando o escuro fica úmido e fundo e o ar fica com um cheiro de orvalho de todos os sonos suspirados nas crinas dos cavalos, o terreno desorientado, corrompido tão doce azulado no escuro. Pulmão. Em 5 minutos um cigarro. Uma escolha, meu filtro de barro de água cristalina, cheia de lodo, estômago estremece, hormônio de máquina, um homem que injeta morfina. O tempo são passos, clima, horas são vácuo, horas insipidas, incolores, águas de cheiro, em 5 minutos eu me deito naquele chão de baldio de um terreno, sinto o frio do chão nas minhas costas e o céu é infinito em uma abóboda e conecto todos os terrenos baldios, cheios de gatos e seus olhos e os anjos planetas meus sonhos, terrenos, baldios, ervas do mato da rua que tem vida e o chão é mesquinho e minhas lutas e luas definham, lamparina, luz de vaga-lume, nectarina, trêmulo opaco, textura dos olhos, do verde do mato. Em cinco minutos todos os gatos flutuarão no ar 5 milímetros do chão, 5 minutos daqui, 5 milímetros do chão e nenhum homem vai notar, nem régua ou fita métrica ou a divinação das incertezas insinua em poças de chuva antiga, e ninguém nunca vai saber ou saberá, aquilo que está entre a terra a 5 milímetros e o céu, em 5 minutos, eu previ o futuro 5 minutos daqui, nada vai acontecer em 5 minutos e no nada existe tudo, eu pulso, 5 milímetros daqui, cinco minutos do chão.

Poesia de blecaute

Aos poucos as luzes da rua foram se apagando, e com elas as televisões e o brilho de alguns olhos no único descanso depois de um dia difícil. Oito da noite, não é hora de blecaute, disse a mãe. Tem que ligar na companhia, o telefone ainda funciona. Sempre mágico em meus ouvidos sondar a extensão dos cabos de fibra ótica na imensidão dos planos e curvas do mundo, funcionando sem luz. A casa escura, ainda bem que o pai chegou, cadê a Ju? Este era o momento de acender as velas, ainda tem? Tem que comprar mais, vai acabar, pra próxima vez já não tem. A ultima vez queimei o fio de cabelo da Ju no fio de fogo da vela, que cheiro, como incenso, chocolate meio amargo, ruim e bom. Na meia luz todos nós e o murmúrio dos vizinhos. Será que o Rubinho já ligou? Ele sempre liga, não vai perder o jogo não. E se nunca mais voltar, será que demora? Meus olhos selvagens procuram lá fora um caminho no escuro, o caminhão da companhia vai demorar, deve ter sido o transformador! Somos todos especialistas, sabemos que a duração da vela é superior ao blecaute e a oração, que quando derrete a parafina as suas formas são imprevisíveis como a nuvem, vaga lumes e fumos devaneiam no ar escuro da noite mais escura. Lemos as estrelas, sabemos todos que este tempo é valioso, que pra matar o tédio temos que notar que a vida em geral é um grande tédio e no blecaute as possibilidades são infinitas. Eu criança e o pai adulto, grande imperador vago daqueles cômodos vazios de luz, eu queria ver o jornal, mentira, ele não quer, ele quer sentar no chão ou deitar família todos juntos na cama, e vai fazer piadas com a mãe, zombar as musicas da igreja pois está no escuro o velho crucifixo sobre a cama, não vão faltar palavras nas suas poucas que tudo significam, coisou o coiso cosinho, eu e a ju vamos rir até as lágrimas, as barrigas doem e o escuro nos protege do mundo, mas e se não voltar? terá a noite garras e fantasmas na cozinha? há vozes no silêncio e passos no quintal? respiram todos? Cansam as vozes, pra que televisão né gente? A gente vivia sem luz no tempo antigo. A noite é pra dormir. Pai, porque as luzes ficam acesas madrugada toda se todo mundo dorme? os jovens tão voltando dos bailes. Mãe, quem acende os postes de manhã? Ele detecta quando o sol nasceu, estupefato. Como pode? Amanhã acordo cedinho e vou ver o primeiro poste apagar, o sol nascer, agora é escuro, a casa cheira vela, reza a vó, o que se pode fazer na funda noite escura sobre as estrelas, senão abrir mais os olhos e tentar ver na escuridão o que não se vê na luz? A luz elétrica, fruto do vidro e cobre, reacendeu na madrugada enquanto os vaga lumes frutos do orvalho e da lua se apagavam no hall da minha infância.

Introdução à hora mágica.

A hora mágica acontece sempre em uma hora diferente, ela possui uma perfeita concisão nos seus atos adornados de ponteiros, com suas pernas e braços abertos em um corpo rígido de horário. A hora mágica, se aprofunda de uma forma suspeita para dentro daquilo que alguns misticos do passado chamaram de “natureza humana”. Ela é interpretada em oráculos e os feriados são sua cópia barata, travada por contratos e outras formas banais de política. A política de fato se faz no seu alento, em traços, letras e rascunhos, diversas formas saem da sua garganta de elefante, muda ao mesmo tempo que sussurra inaudível sua cria de cosmo. A hora magica é no entanto imperceptível. É necessária aguda astúcia pra notar sua chegada, que vem de leve as cinco da tarde, quando as nuvens ficam alaranjadas, como que fecundas pelo resíduo do trabalho diurno e sob o sol. Elas amornecem, se apagam e espreitam, afoitas por segredos formulados em suas formas sempre mutantes. A hora mágica é translucida e se confunde com sentimentos mundanos, o que não a prejudica de nenhum modo. Ela dança e seduz, ou mesmo acalenta e trata com carinho. Pode no entanto, te levar em um caminho elevado e difícil de escala por algo de puro, que não pode no final ser tocado pelas suas mãos ensanguentadas. Imagina-se que a hora mágica não opera em minutos, ou segundos, mas por estranhas durações que remetem a afeições. As três da manhã, sua paródia é felina, entre corredores e desníveis espaçados por todo o solo. As bordas dos olhos escurecem afoitas de se filiar do escuro, fechadas como ninhos sobre ovos cristalinos, o buraco negro, se abre e se enche. A hora mágica é descoberta na percepção principal do olhar, e do perfume, flores odorizam na hora mágica, gatos procriam em becos escuros, casais se apaixonam a luz dessa hora, seja o sol em seu poer, ou a lampada ainda fria de um boteco silencioso. Os olhares se conectam rápido, como máquina de rapina. No frio conforta, no calor remete a dor, mas boa. As oito da manhã a hora mágica são o cheiro dela, o céu azul de um dia frio e as calotas polares derretendo. Aos que anseiam ir ao seu encontro, esqueçam-na temporariamente, a próxima hora mágica será quando se lembrarem dessa história.

O Beco

No jardim há um beco, onde se escondem segredos de lodo e lama, forjados na matéria impura e decomposta dos animais mortos. Lá há a beleza do olhar perdido, o toque desnecessário e impossível, a delicada insensatez dos modos. Oculto entre flores e anjos de pedra, espinhos e árvores frutíferas, escuro, indelicado e impenetrável, o beco proibido.

Lá dentro, feras procriam, inflam suas barrigas com o gérmen de um futuro corrompido, afastam-se da lei, estão sempre a sombra, frágeis e com olhos puros que prometem redenção.

Quão insensata é a lógica do espaço, inventar no mundo um jardim e um beco escuro, bordas secas, vastos campos de rascunhos perdidos na palma de uma mão. Lá onde o sol toca o horizonte, a borda de uma distância imaculada em olhos de desejo e pálpebras deslacradas. Faz frio no beco escuro, mas quentes os segredos prevalecem, amordaçam vis as palavras frágeis, os sons se organizam em frases inacabadas, descascam, como a parede de um velório.

As flores são de plástico, mas o tempo é vago como a matéria, e se perde em sua atitude interminável, rói o osso como um cão faminto, afunda junto com sua âncora e morre atrofiado em um ninho abandonado.

O beco é fundo e denso, há névoa e o caminhar se confunde com a inconsistência que parece viva, de um chão duro de concreto. Não há infância que não esteja registrada nas notas mais concisas de seus arquivos intermináveis, nem desejo proibido que não durma no seu regaço. Não há fio nem linha que não conduza aos poucos aos seus braços, o pensamento, essa vertigem destilada em fragmentos e deletérios, caminha ao seu encontro em sonhos mesquinhos, vontades, futuros desesperos e trilhas inexatas. O beco tem a forma infame de um sonho ruim, de um dia alegre mas que se ilumina mais a noite, tem o cheiro da noite, tem o clima de um corredor de hospital, de uma cama macia e pronta ao êxtase.

O beco não pode ser evitado, cria laços, funde na matéria densa do corpo um coagulo incalculável e que vaza as redes e métricas, como água toma a forma vazia do espaço, preenche vastos buracos e imensas fendas, inerte e vivo como um armário, intocado e habitado por perfeitas pérolas. Joias e destroços, porcos e sua lavagem.

O jardim, é perfumado mas seca, o beco é sempre úmido e é sempre noite para suas estrelas. Como um tumulo celebra o escuro. Como os olhos, tem cortinas que não se sabe porque abrem, a cada novo dia.

O beco é um poço, um quarto, um cadafalso, mas também um paraíso, em suas potências infinitas, definha e floresce ao mesmo tempo, é cultivado dia após dia pelo escuro e seus miasmas, pelo ferro contorcido no sangue dos amantes, dos impiedosos e das crianças, vaga e morde o lixo, sente frio e se consola em cantos empoeirados, marca na pedra fluido e empesteado, traz na garganta um grito apenas sussurrado, um choro contra o travesseiro, um riso de desespero, um orgasmo, um rito das horas que não passam.

No fundo do jardim, no caminho tortuoso e inefável, mora o beco, escuro e inevitável. Um aviso já apagado e esquecido, jaz sobre sua entrada e como um resto relembra a sua antiga forma: sem saída.